Um poema inédito da poetisa Abília Calotes

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Recebi ontem, por via electrónica, bilhete amigo da poetisa Abília Calotes que está, por estes dias, a participar num congresso literário luso-brasileiro em Vitória da Conquista, município do Estado da Bahía, Brasil. A gentil missiva incluía um poema inédito de Abília Calotes escrito num intervalo da convenção literária. Diz-me que foi ontem a cerimónia de encerramento do prestigiado evento, onde ela teve oportunidade de se alcoolizar e, de seguida, declamar quinze poemas. E termina o seu postal dizendo, com a timidez que se lhe reconhece, «e não me lembro de mais nada». Quem também estava nesse congresso literário luso-brasileiro que decorreu na cave da Drogaria Camões, era o escritor Horácio do Galho, de quem recebi amável telefonema, comentando que a poetisa Abília Calotes se perdeu da comitiva portuguesa no aeroporto e embarcou num voo sem escala para a Líbia. Foram já contactadas as autoridades portuguesas no sentido de localizar, em Tripoli, a desditosa poetisa. Descobriu-se entretanto, disse-mo Horácio do Galho, que a bagagem da renomada poetisa portuguesa foi expedida, por engano, para um voo com destino à Nova Zelândia. Calcula-se que a pequena mala possa conter inéditos de Abília, cujo livro mais recente se intitula Desmaiei em Casa. O escritor Horácio do Galho esqueceu-se dos óculos na Drogaria Camões mas quando deu pelo facto estava a sobrevoar o Atlântico.

 

Sentir na sentina

Fui à sentina
e sentei-me
soltei-me

se eu não
tivesse ido à sentida
não tinha sentado
nem soltado

mas fui
que bom foi
ui ui
agora é que
não pesco
um boi

eu acho que
a sentina
não sente
mas eu
na sentina
fico quente

é bom ficar
quente
digo eu
a toda a gente

 

Uma inédita ode juvenil do pensador Catatau Vincennes

45 - Cópia (2) - Cópia

 

Decorreu ontem, na Fondation Franco-Portugaise La Funac, uma sessão cultural em homenagem ao inesgotável pensador Catatau Vincennes, organizada por sua filha Manga Vincennes, a qual prepara, para edição, não se sabe ainda se na Porco Editora ou na Martírio & Capim, Os Papéis Perdidos de Catatau Vincennes. Acedi, com bastante relutância, a participar, dado que possuo vazadouro particular, mas, enfim, não pude escusar-me ao simpático e inebriante convite com que fui pessoalmente alvejado pela gentil Manga Vincennes. Amiga dileta, Manga Vincennes concedeu-me a autorização necessária para aqui publicar uma ode inédita de seu mastodôntico pai, depois de o próprio ma ter facultado sob a égide destas significativas e afectuosas palavras: «Toma lá um inédito para a tua sentina literária e passa para cá cinquenta euros». Quis, naturalmente, coibir-me, dada a ocasião emérita e o prestígio dos presentes, de explicar ao meu Amigo, à semelhança de vezes anteriores, a diferença existente entre sentina e vazadouro, mas a isso me vi obrigado, graças à teimosia elucidante da poetisa Abília Calotes, infelizmente atenta à ocasião.

 

Do mundo foragidos

Do mundo foragidos, por ínvios trilhos e arvoredos,
Na solidão dos campos, renegados de conselhos,
Ledos corríamos, movidos só por húmidos segredos…
Na palha do gado copulávamos que nem coelhos…
Nossos semblantes, transpirados e vermelhos,
Irradiavam a felicidade dos amantes condenados!
Condenados, ah sim, perdidos também, mas fartados!

E soíamos depois do mundo fugir sem receio,
Tomar autocarros, cavalos ou carroça sem freio
Buscando na dissipada, triste linha do horizonte
Um país onde fôssemos, à vez, a água e a fonte;
E não estes dois renegados fugidos, a monte,
Como vulgares contrabandistas, infectos bandidos…
Fujamos, Amada, até do mundo sermos esquecidos!

 

56 - Cópia
Jovem numa praia lendo e sublinhando um livro do pensador português Catatau Vincennes

Um soneto inédito da poetisa e cantora lírica Marcolina Maria

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Foi com algum júbilo que recebi, por via de bilhete amigo, a notícia estonteante da edição da poesia completa da minha inebriante e quente amiga, a poetisa e cantora lírica Marcolina Maria, incontornável referência faroleira das Letras Portuguesas.
A poetisa e cantora lírica Marcolina Maria, natural de Preciosas do Alto Vouga, embarcou com os seus gentis pais para o Brasil em 1954, tendo-se a família instalado, depois de periclitantes e aventurosos ínterins, na pitoresca cidade de Abunã, no Estado da Rondónia, muito perto da fronteira com a Bolívia. Começaram seus pais por trabalhar no caminho-de-ferro que liga a capital do Estado, Porto Velho, a Abunã, e daí prossegue, entre frondosa vegetação, até Guajará-Mirim. Muito cedo, porém, os pais de Marcolina Maria descarrilaram vindo a abraçar uma outra actividade significativamente mais lucrativa, o contrabando violento. Enquanto o pai, Marcolino Tavares, contrabandeava na perigosa zona fronteiriça com a Bolívia, atascado em pântanos tropicais, a mãe, Ermelinda Casais, focou a sua actividade al longo da fronteira com o Estado do Amazonas. Em 1958 mudaram-se para S. João dos Patos, no Estado do Maranhão. Aqui, com mais oportunidades de trabalho, o pai de Marcolina Maria, conhecido como «o cangaceiro» reiniciou vida no assalto aos comboios enquanto a mãe, Ermelinda, «a rasgadora», trabalhou no combate às bactérias agrícolas utilizando as propriedades arrasadoras da sua flatulência natural. Aventurosa vida, em suma, que sei, por fontes bem localizadas no meio literário da capital, estar a ser escrita pelo jornalista Gomes Canasteu, amigo próximo da poetisa e cantora lírica, pelo que mais não adianto.

Dizia, portanto, que recebi por bilhete amigo, endereçado pelo incansável pensador Catatau Vincennes, a nova da edição a que acima aludo. Na referida nota, Catatau Vincennes subscreveu-se, pelos meios eléctricos hoje existentes, nestes sintomáticos termos: «Júlio, a maluca da Marcolina conseguiu convencer o bêbedo das Edições Portugal Hediondo a publicar-lhe toda a poesia, incluindo, imagina tu, a poesia inédita, a começar por aquela porcaria que ela editou quando estava no Canadá! Parece que aquela merda se vai chamar Minhas Palavras ao Vento, e em dois volumes. Já estás a adivinhar que a gaja vai organizar um jantar em casa dela e cravar-me a porra de um texto sobre o livro… Disseram-me, ainda, que o X. fala dela neste livro que publicou agora, não admira, isto é um putedo. E tu também me saíste um grande cabrão, vê lá se escreveste um artigo sobre os meus Papéis Perdidos!» Não esperam os leitores atentos e perscrutadores que eu revele, assim à tripa forra, quem é «X»… Impede-me o pudor, hélas! mas sobretudo a resiliente capacidade de sacrifício que me caracteriza – responsável, até, por alguns dolorosos e injustos equívocos com a matulona da parcela abaixo daquela que habito – que eu proceda a tal desocultação, pois coloco acima das contingências egocêntricas de todos, as Letras portuguesas!
De facto, a Edições Portugal Hediondo, com o apoio da Fundação Luso-Monegasca de Estupefacientes e Cultura, vai, pois, publicar em dois tomos a poesia completa da celebrada cantora lírica Marcolina Maria – dentro e fora de portas – e que inclui, para gáudio da cultura literária portuguesa, a reprodução fac-similada do livro que a insigne cantora e poetisa portuguesa publicou nos idos do decénio de Setenta no Canadá, quando lá se encontrava a viver (exilada, hélas!) e a trabalhar na indústria metalúrgica pesada. As suas tournées artísticas canadenses, realizadas com o cantor de intervenção Cipião Operário, também exilado naquele país, são ainda hoje lembradas com irrecusável saudade, quer por Portugueses, quer por naturais. Marcolina conheceu Cipião no meio metalúrgico pesado, pouco depois de chegar ao Canadá, proveniente do Brasil, na sequência do desgosto dilacerante que resultou do estranho e nunca confirmado desaparecimento do seu primeiro marido, o poeta Deodato Candeias, no decorrer de um congresso literário na Amazónia. Estes dois volumes terão, em príncipio, o mesmo título do primeiro livro de Marcolina Maria, Minhas Palavras ao Vento, e constituem a feliz oportunidade para a reimpressão de dois dos principais livros que escreveu, já em Portugal, para onde regressou depois de Abril de 1974: O Cacete e Furacão de Palavras, respectivamente publicados em 1976 e 1979. Para assinalar a ocasião, e antes de proceder ao vazamento do primeiro Esquiço Biográfico, justamente a aventurosa biografia desta querida Amiga e distinta Artista, procedo agora, com a autorização devida da própria Autora, ao vazamento de um angustiado soneto inédito que integrará o segundo volume da obra completa, dedicado a Inéditos e Rascunhos, em breve publicados pela conceituadíssima editora Portugal Hediondo. Resta-me acrescentar que este soneto inédito me foi remetido do Brasil, depois de ter sido declamado pela minha encantadora amiga aos microfones da Rádio Cachoeira, em São João dos Patos e que o reencontrei, há dias, a aconchegar um queijo da Serra amanteigado.

 

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Não voltes, ah não!

Desapiedado, bruto e cruel com’um vento rasgador me acusas,
Cravando em meu exangue peito a infame adaga da desconfiança!
Ah, souberas tu a dor que me aniquila e vence quando t’escusas
Ao vulcânico, fervente amor deste ar interior que triste não t’alcança!

Porque te afastas, dissimulado, indiferente até, porque me recusas tua boca,
Se tão belas loas cantaste à minha fremente e escaldante interioridade?
Castigas-me, sim, que eu sei… Mas ainda t’espero, chorosa e taralhoca
No mesmo jardim! Mas sê sincero – não tens de meus doces flatos saudade?

Poupa-me à tua falsa e impiedosa resposta, sim, pois não te guardaste
De me enlouquecer com palavras que o vento levou… És um traste…
E eu o sabia desde que o destino, em ti mudado, me bateu nos cornos…

Ah, mas sou eu agora que te invectivo, eu toda ferida e impiedosa,
E grito, doida de orgulho, na agonia atroz desta aragem pútrida, indecorosa,
Que não voltes, ah, não! Que não voltes a confundir-me os contornos!

 

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